quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Cidades sem Fome: A ONG que transforma terrenos abandonados em hortas orgânicas

Projeto utiliza terrenos sem uso, abandonados e até espaços de torres de energia para cultivar alimentos saudáveis para a periferia e fortalecer economia local.

Fonte: HUFF Post Brasil
By Luiza Belloni





HUFFPOST BRASIL Horta de alfaces da Cidades sem Fome.

De domingo a domingo, Sebastiana Helena de Farias, mais conhecida como dona Sebastiana, acorda bem cedo e vai para a horta, um terreno comprido, porém estreito, em São Mateus, na zona Leste de São Paulo. Há cerca de 10 anos, ela tem esta mesma rotina, mas teve que trabalhar ainda mais neste ano, após seu marido Genival morrer. Era ele quem fazia boa parte do trabalho de cultivo.

Apesar de modesta, a horta é orgânica e produz muitos alimentos, como milho, mandioca, feijão, coentro, alface, banana e tomate. "Aqui falta mercadoria, tudo isso plantado e ainda falta quantidade", diz, orgulhosa, apontando para a vegetação verde tomada por alimentos. Ela explica que muitas vezes, tem mais cliente do que produto. "Depende da natureza, a gente trabalha como ela quer, né? A gente põe os adubos, não tem agitação para ela correr, é tudo época certa, e por isso atrasa", disse a pernambucana de 67 anos ao HuffPost Brasil.

Dona Sebastiana é uma das beneficiadas da Cidades sem Fome, organização sem fins lucrativos voltada para hortas coletivas e urbanas. Há 14 anos, a ONG faz o que parece impossível em São Paulo: utilizar áreas e terrenos sem uso ou abandonados para hortas orgânicas. Assim, a ONG gera renda e alimento natural nas áreas periféricas da cidade, onde o emprego e o acesso aos alimentos saudáveis são escassos.

Segundo dados da Fundação Seade, São Mateus é o bairro que registrou a maior taxa de desemprego na capital paulista no ano passado: cerca de 20%, enquanto em toda a cidade, a porcentagem de desempregados é de cerca de 17%.

"Faz uns 9 anos que estou aqui, e a ONG começou a ajuda faz uns 3 ou 4 anos. Meu marido foi embora há um ano, e eu pensei que não ia aguentar, mas tive muita ajuda da ONG e dos vizinhos", contou dona Sebastiana. A horta é um complemento da sua renda, que se limita à aposentadoria correspondente a um salário mínimo que foi pago com carnê mês a mês até completar 60 anos. "Ela [ONG] começou a divulgar, a pegar as mudas, colocou cobertura nas plantas. Então tudo isso ajuda muito. Eu pago minhas contas daqui e assim a gente vai vivendo, né filha?", acrescentou.

Além de dona Sebastiana, a horta também é o sustento de outras dezenas de famílias, que diariamente plantam, colhem e vendem seus produtos para a clientela da região.


LUIZA BELLONI Dona Sebastiana, em sua horta em São Mateus, zona Leste.

Francisco Assis de Araújo, de 66 anos, é um deles. Apesar de não ter seu próprio pedaço de terra na horta comunitária, ele trabalha de 6 a 7 dias por semana para os donos dos lotes, como dona Sebastiana. "A gente fez acordo para trabalhar na horta dela, uma parceria né? Depois que o Genival faleceu, dona Sebastiana precisa de mim todos os dias", conta Assis, que veio de Ouro Brando, no Rio Grande do Norte, para São Paulo aos 23 anos de idade.

Apesar de estar aposentado há quase de 19 anos, ele trabalha na horta há um ano e meio e diz que a renda extra é um complemento para a casa. O dinheiro, porém, não é o único motivo que o faz trabalhar de segunda a sábado com a enxada. "Eu me arrependi de te me aposentado. Fica nessa coisa monótona. Sabe o que é? A gente está acostumado a trabalhar. Nasci e me criei trabalhando. Aí chega uma hora que eu vou cruzar os braços? O organismo não aceita isso", desabafa. Ele diz que, ao se aposentar como metalúrgico, começou a ficar triste e achou que estava com início de depressão. Isso mudou quando começou a fazer bicos para sua antiga empresa e desde que recebeu convite para ajudar na horta. "Eu só paro de trabalhar quando for para o interior de São Paulo", disse.

Ele e a mulher sonham em ter uma vida calma no interior, já que seu casal de filhos já está "crescido" — a filha mais nova vai se casar no próximo ano e, o menino, mora em Los Angeles, nos EUA. Mas, por enquanto, a horta é sua rotina. "Eu passo a enxada, tiro o mato e vou plantar o coentro. Me faz bem aqui, apesar do cansaço, é melhor do que ficar em casa, né?"


LUIZA BELLONI Hortas urbanas e coletivas que fazem parte da ONG Cidades sem Fome.

'O objetivo é gerar renda, emprego e dar capacitação'

Dona Sebastiana e seu Francisco são casos típicos dos brasileiros que trabalharam duro a vida inteira, não tiveram a chance de se capacitarem profissionalmente e hoje vivem às margens do mercado de trabalho. Esse é o perfil de beneficiários que é foco da Cidades sem Fome, que desenvolve projetos de agricultura sustentável e orgânica em áreas urbanas.

"Existem várias políticas públicas para inserir o jovem no mercado de trabalho, mas não existe nenhuma política pública para pessoa que está saindo dele", conta Hans Dieter Temp, fundador do projeto. "São pessoas que vieram de outro estado para trabalhar em São Paulo, não têm uma aposentadoria suficiente, não têm casa, não têm assistência médica e dependem do filho e de um parente. Esse pessoal saiu do mercado do mesmo jeito que entrou: sem qualificação e com contas para pagar", disse Hans.

Após trabalhar por anos na iniciativa privada, Hans decidiu buscar um projeto social que não fosse apenas assistencialista. Essa ideia veio quando ele estava na Alemanha, enquanto cursava técnico em Agropecuária e Políticas Ambientais, na década de 90. "Na Alemanha, eu vi muita gente milionária botar suas luvinhas no final de semana e podar suas macieiras ou plantar flor com a família. Quando a gente olha a Europa, a gente fala 'nossa que lugar limpo, os poderes públicos trabalham muito bem, que inveja'. Mas quando você vive lá, você percebe que não é prefeitura que faz isso, é a comunidade", explica. "E eu pensei: por que não fazer isso no Brasil? A gente tem um clima bom, chuvas são bem distribuídas, temos milhares de desempregados e mais de 20 milhões de consumidores", disse.

Hans voltou para São Paulo e, em 2004, a ONG foi criada. As dificuldades, no início, eram grandes. Além de não ter verba, nem pessoal suficiente, ele também sofria muita resistência quando o assunto eram produtos orgânicos.
No começo não foi fácil. 14 anos atrás, esse papo de comida saudável, energia limpa e comida orgânica era um tabu. As pessoas me perguntavam: por que vou comer orgânico?

Essa foi uma das barreiras para conseguir espaços para começar a fazer hortas, já que todos os terrenos usados pela ONG são cedidos por organizações privadas, órgãos públicos ou por pessoas físicas. A situação melhorou quando a organização começou a ganhar aportes e prêmios — e foi entrevistada no Jornal Nacional. "No dia seguinte da reportagem, minha caixa de e-mail tinha milhares de pessoas que queriam ceder seus terrenos, e eu comecei a catalogar tudo", disse.


LUIZA BELLONI Horta da ONG Cidades sem Fome em São Paulo.

Com os terrenos, o próximo passo foi procurar beneficiários que queriam fazer suas hortas e ter uma renda extra. "O projeto sempre foi focado num tripé de objetivos: gerar trabalho, renda e capacitação para os beneficiados. Capacitação é importante para que eles possam andar com as próprias pernas e não precisar tanto da gente depois", esclarece.

Mas só há cerca de 5 anos que o negócio começou a tomar forma — alavancado pela onda da alimentação saudável e pela exposição na mídia. "A situação mudou. Tem muito terreno que está fechado, e eles [donos] nos oferecem sem cobrar nada. Para eles, é melhor a gente ocupar do que os outros", argumenta Hans.

Desde então, a Cidades sem Fome cultivou 25 hortas e beneficia mais de 115 pessoas.
Hortas embaixo das torres de transmissão de energia

Até este ano, a ONG se limitava a fazer hortas comunitárias e hortas urbanas, como a de dona Sebastiana, com modelo de comercialização local. O modelo criado por Hans se mostrou eficiente, mas ainda não estava ideal, na visão do empreendedor. "O modelo é muito trabalhoso. É que nem loja, tem que trabalhar todos os dias, inclusive de fim de semana. Nem sempre vamos conseguir beneficiados assim. O jovem não vai querer trabalhar no sábado e domingo, vai querer ficar com a família, se divertir", disse.

Pensando nisso, Hans teve a ideia de criar hortas inteiras para apenas uma empresa compradora. Com mais dinheiro entrando na conta, e sempre do mesmo comprador, seria possível contratar pessoas a um salário maior e o funcionário poderia trabalhar menos dias. Meses atrás, eles conseguiram fechar a primeira parceria com a empresa de alimentos Sodexo. Uma horta inteira de alfaces foi cultivada para abastecer um único cliente. "A inserção social é a mesma: teremos dinheiro para contratar beneficiários da região, que estão desempregados. Eles trabalham de segunda a sexta. Com o passar do tempo, vamos dar alternância entre os modelos e dar sustentabilidade ao projeto", explica.

A grande sacada não foi apenas a mudança no modelo de produção, mas onde o alimento é produzido. Hoje, a Cidades sem Fome fez uma parceria com a Eletropaulo e começou a utilizar os terrenos onde ficam as enormes torres de transmissão de energia, que ocupam grandes áreas nas áreas periféricas de São Paulo. A parceria, no entanto, surgiu por acaso.


LUIZA BELLONI Pés de alface da horta da Cidades sem Fome em área de torres de transmissão.

"Tínhamos algumas hortas de iniciativas privadas embaixo de algumas linhas de energia, mas não tinha nenhum documento assinado ou parceria oficial, só não queríamos deixar de ajudar os beneficiários", conta. A Eletropaulo gostou da ideia e procurou a ONG para fechar parceria. A Cidades sem Fome foi a primeira a fazer acordo com a Eletropaulo com termo de comodato legalizado e, por isso, não precisa pagar nada para a companhia de energia. "Eu acho que eles pensaram: o que esses caras estão fazendo aí?", brincou.

O acordo é bom para a organização, mas também para a Eletropaulo. Além de ajudar uma ONG, a companhia se beneficia por ter alguém cuidando e ocupando seu terreno. Além de ficar mais barato, também impede que os terrenos sejam ocupados por pessoas que buscam uma moradia.

A parceria também gera dúvidas dos consumidores: um alimento criado embaixo das torres de energia é seguro? Sim, segundo a Eletropaulo e Hans, que trabalha no campo há anos. O empreendedor reconhece que não há nenhum estudo conclusivo no Brasil ou no mundo que diz que esses alimentos são inseguros. "A Eletropaulo tem suas normativas e seguimos à risca. Se fosse perigoso, olhe em volta, todos esses moradores estariam em perigo", argumentou. "A Eletropaulo só libera o local depois de fazer todos os testes possíveis."
Um futuro mais sustentável

Os diferentes modelos da Cidades sem Fome fizeram Hans repensar também sobre seu modelo de negócio. A partir do ano que vem, a ONG passará a ser um negócio social. "O conceito de negócio social se vende melhor. Quem tem dinheiro é banco e, pra banco, tudo é número", explica.

Segundo ele, a ONG não pode mais só viver de doações e prêmios, pois o negócio se torna insustentável e instável. "Como vamos empregar pessoal, e depois que a verba acabar, mandar eles embora?", questionou.

Christian, filho de Hans, explica que a empresa social terá o lucro atrelado ao número de empregos gerados. A ideia é criar uma plataforma pública para fazer prestação de conta a cada dinheiro recebido. "Teremos um empregômetro no nosso site pra mostrar quantas pessoas estão sendo beneficiadas com os projetos", disse.

Com a mudança, a ONG pretende criar cerca de 500 empregos até o final do ano que vem, contabilizando as hortas urbanas e as hortas embaixo das linhas de transmissão de energia, que contarão com funcionários contratados nos bairros locais. Além de São Mateus, a Cidades sem Fome tem projetos entre Cidade Tiradentes, Itaquera e São Miguel Paulista.

"[São Mateus] é um bairro em que todo mundo tem emprego no centro, e não aqui. Se tem emprego aqui, fortalece a economia local. Isso aumenta a renda, melhora a saúde pública, pois você incentiva uma alimentação mais saudável, e diminui a insegurança, pois tem mais gente empregada."

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